Luciana Konradt

A infância que habita em mim

Por Luciana Konradt
Jornalista, advogada e escritora

Durante as férias de verão, há muitos anos, abandonei o hábito de viajar para ficar repousando, numa espécie de dolce far niente, em uma pequena casa no litoral norte. Lá, disponho de um pátio estreito, que decorei com grama, pedras, pés de lavandas, palmeiras e uma fonte d’água. Uma grande face de Buda encostada à parede lateral, sobre a qual deságua o ruído de um arroio. O mesmo som aconchegante das águas transparentes e mornas que serpenteavam entre cachoeiras e sombras generosas, pelo arroio onde brincávamos, meus irmãos e eu, no interior de Pelotas.

Nas tardes de calor, sento-me à sombra de um guarda-sol, ao lado do grande rosto de concreto e escuto, nas lágrimas do Buda, os sons da minha infância. Então, quase sempre, me questiono: Por que não retorno, de fato, para visitar meus cenários de criança. Por que não volto com mais frequência Pelotas? À colônia onde nasci? E ao arroio que hoje revivo, entre passarinhos, materializado em meu quintal?

Talvez, eu não regresse lá porque aquele não será o mesmo lugar mágico, onde passava horas a brincar. Porque se voltar, agora, se quebrará o encanto. Não estarão mais, por lá, os amigos de pescaria e a mesa de cucas e pães preparada para depois das aventuras. Não estarão, por ali reunidos, meus pais, meus irmãos e minha avó, apressada, preparando wafles com geleia para o café da tarde. As árvores terão crescido; serão outras árvores. Quase irreconhecíveis. Não existirão mais a horta e as roseiras em flor. A casa não terá mais o cheiro do movimento e das frutas da estação. Nem será testemunha do corre-corre de gente trabalhando por todos os lados. E, como o curso das águas, que tudo leva, restarão apenas pegadas no tempo. Doces lembranças de uma era encantada. Então, para preservar o encantamento, talvez seja mais agradável percorrer a infância que habita em mim. Aquela que carrego sempre comigo e posso acessar, quando quiser, até mesmo no fundo de um pequeno jardim, em uma praia distante.​

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